extraido do site da Revista Época, feita pelo brilhante reporter José Ruy Gandra
Peregrino muçulmano ora no Deserto do Sinai. Sua fé é um exercício de disciplina que abre portas para o território do sagrado
Ao ver Buda meditando, sentado sob uma árvore, um brâmane ficou fascinado com sua serenidade e autodisciplina. “Você é Deus?”, perguntou-lhe o monge, ao ver sua concentração transformar-se numa extraordinária paz interior. “Não”, foi a resposta. “Apenas descobri um novo potencial na natureza humana, que nos torna capazes de viver em paz e harmonia neste mundo de tantos conflitos e sofrimentos.” O segredo, disse Buda, era não tanto crer, mas, sobretudo, praticar a meditação com afinco. “Desse modo, cada um atinge o máximo de sua capacidade, ativa partes adormecidas de sua mente, neutraliza o próprio ego e se torna um ser humano plenamente iluminado.” Por fim, ao despedir-se do sacerdote curioso, Buda disse: “Lembre-se de mim como alguém que despertou”.
É com esse episódio singelo que a escritora de origem irlandesa Karen Armstrong conclui seu mais novo livro, The case for God (em tradução livre, Uma defesa para Deus). É um fecho fiel tanto à vida de Karen quanto à essência de seu livro. Ex-freira católica durante os trepidantes anos 1960, portadora de epilepsia, Karen perdeu a fé – para resgatá-la, décadas adiante, sob uma nova ótica, semelhante à de Buda. Para ela, o encontro de Deus deriva menos de uma crença e mais do esforço pessoal. Autora de mais de 20 títulos sobre religião, entre eles aclamadas biografias de Maomé e de Buda e uma história da própria Bíblia, Karen nunca mais retornou formalmente à Igreja Católica ou a qualquer outra. “Sou uma monoteísta free-lance”, diz ela.
Com lançamento no Brasil previsto para o final de 2010, The case for God faz parte de uma nova leva de livros que defendem a religião de ataques recentes. Fazem parte dessa leva God is back (Deus voltou), escrito por John Micklethwait e Adrian Wooldridge, jornalistas da revista The Economist, e Reason, faith and revolution: reflections on God debate (Razão, fé e revolução: reflexões sobre o debate a respeito de Deus) , do crítico literário inglês Terry Eagleton. Todos esses trabalhos partem de uma mesma constatação: mesmo sob o fogo cerrado do racionalismo ateu, a devoção a Deus e às religiões continua a se fortalecer no mundo todo.
Essa nova onda tenta revidar os ataques do grupo de pensadores conhecidos como os “novos ateus”. São autores como o biólogo inglês Richard Dawkins, cuja defesa ferrenha da teoria da evolução das espécies valeu-lhe – ou custou-lhe, depende... – o apelido de Rotweiller de Darwin; ou o jornalista anglo-americano (e colunista de ÉPOCA) Christopher Hitchens, que considera a ideia de Deus uma crença maligna e totalitária, com seus dias contados pela ciência. A dupla, acrescida do neurocientista Sam Harris e do filósofo Daniel Dennett, ambos americanos, ficou conhecida, nos meios intelectuais, como os Cavaleiros do Apocalipse, pela virulência de seus ataques à religião. “Elas permitem que visões, que de outra forma seriam consideradas sinais de loucura, tornem-se aceitas e, em muitos casos, veneradas como sagradas”, diz Harris.
Em The case for God, Karen faz o melhor contra-ataque às teses do grupo. “Os novos ateus são teologicamente iletrados”, escreve ela. “Como os fundamentalistas religiosos, eles infantilmente concebem Deus como um ser poderoso que os homens não conseguem enxergar.” Para Karen, o engano comum a ambos é analisar os textos sagrados em sua literalidade. Uns para negar cientificamente a ideia de Deus. Outros para distorcê-la com finalidades políticas.
A Grande Mesquita de Meca durante a peregrinação anual, judeu no Muro das Lamentações em Jerusalém e cardeais católicos no Vaticano: símbolos do monoteísmo que os novos ateístas consideram uma afronta irracional à ciência
O Dalai-Lama abençoa monges tibetanos. A dissolução do ego por meio da meditação leva a uma compreensão mais refinada da realidade
Por séculos, afirma Karen, as ideias de Deus e dos livros sagrados foram bem mais sutis e profundas do que hoje supõem novos ateus e fundamentalistas judeus, cristãos ou islâmicos. Mas o avanço da ciência, a partir do Iluminismo, cerceou nossa mente e restringiu seu alcance a fatos empiricamente comprováveis. Esse cientificismo triunfante foi inaugurado pelas três leis da mecânica clássica, do físico inglês Isaac Newton, e teve seu auge dois séculos mais tarde, com a teoria da evolução das espécies, do naturalista inglês Charles Darwin. Aos poucos, de acordo com Karen, a ciência suprimiu um dos ingredientes mais relevantes da fé: o mito, a capacidade humana de, por assim dizer, vislumbrar o inconcebível. “Esse conflito entre ciência e religião acabou nos afastando das formas mais puras de fé. As pessoas esqueceram que a razão e o mito sempre foram complementares no ser humano”, diz Karen. Ao descartar o mito, a ciência, segundo ela, sequestrou a religião da vida da humanidade.
A partir do século XVIII, gradativamente tudo passou a exigir a chancela da ciência. Mas nada, teoria ou lei alguma, conseguiu abalar o fundamento mais sólido das religiões: a necessidade humana pelo sagrado. “Somos, por natureza, criaturas em busca de sentido. O Homo sapiens é, também, o Homo religiosus”, afirma Karen. As ideias teológicas vão e vêm, mas a busca humana por sentido permanece. “A religião não existe para nos explicar a origem do Universo. Esse é o papel da ciência”, diz Karen. “Religiões nos ajudam a lidar com os aspectos da vida para os quais não existem respostas fáceis: a morte, a dor, o sofrimento, as injustiças da vida e as crueldades da natureza.” Em suma: religião é refletir sobre questões que não cabem na lógica ou num simples cálculo. É refletir sobre o mito. Karen delimita os domínios da razão e da fé com um exemplo de rara clareza. “A razão pode até nos curar do câncer”, diz. “Mas não nos ensina a agir ao receber seu diagnóstico nem nos ajuda a morrer em paz.”
O primeiro passo rumo à conexão com o sagrado, segundo Karen, é não tratar Deus como um ente supremo, mas sim como o mistério que foi, é e, por muito tempo, ainda será. Numa palavra: como o desconhecido. Karen propõe um enfoque da religião que tenha mais a ver com o coração e a arte do que com a razão pura. Que lide mais com rituais que com ideias. “Só assim ela se torna uma fonte de fortalecimento pessoal”, diz ela. “Você só aprende a cozinhar cozinhando. Com a fé é a mesma coisa.”
O segundo passo, de acordo com Karen, é adquirir a persistência revelada por Buda no episódio citado. “A fé requer trabalho duro e persistência”, afirma Karen. A religião, diz, é uma disciplina prática. Ela não brota de reflexões abstratas, mas de exercícios espirituais (orações, preces, meditação) e de um estilo de vida praticados com regularidade. O auge da experiência religiosa consiste em alcançar um estado de reverência, mesmo sabendo que Deus não pode ser traduzido racionalmente. Foi o que sempre fizeram, como mostra The case for God, as grandes tradições monoteístas. Pelo menos até que a ciência as virasse do avesso, ao exigir-lhes comprovações científicas estranhas a sua essência.
Karen ilustra essa busca incessante pelo sagrado, inerente aos humanos, com uma história. Entre os muitos judeus que perderam sua fé em Auschwitz, um grupo decidiu levar Deus a julgamento. “Como pode, afinal, uma divindade onisciente e tão benevolente permitir tamanho horror? Ou ela não existe ou não merece nossa devoção”, eles argumentavam. Após longos debates, Deus foi condenado à morte. O rabino que presidia o júri proclamou então o veredicto: “Deus está morto”. Depois, calmamente, disse: “Agora vamos, pois está na hora da oração noturna”.
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